"A Cidade e as Serras", Capítulo XIII, de Eça de Queirós
Description
Capítulo XIII, em audiolivro, do romance “A Cidade e as Serras” de Eça de Queirós.
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“A Cidade e as Serras” é um desenvolvimento do conto “Civilização”, cuja publicação em livro ocorreu em 1901, já depois da morte do autor. No romance é relatada a história de Jacinto, tendo como narrador José Fernandes, um amigo fraternal. Jacinto nasceu e viveu toda a sua vida num palácio dos Campos Elísios, em Paris. Apesar de rodeado de conhecimento, de tecnologia e de luxo, vive aborrecido e decide regressar a Tormes, na região do Douro.
TRANSCRIÇÃO
—
XIII
Ai de mim! Não se passou com brilho, nem com alegria! Quando o meu Príncipe entrou na sala, com uma elegância onde eu senti as malas de Paris (abertas na véspera) — uma rosa branca no jaquetão preto, colete branco lavrado e trespassado, copiosa gravata de seda branca, tufando e presa por uma pérola negra —, já todos os convidados enchiam a sala, — o D. Teotónio, o Ricardo Veloso, o dr. Alípio, o gordo Melo Rebelo, de Sandofim, os dois manos Albergarias, da Quinta da Loja; todos se conservavam de pé, num magote cerrado. Em torno do sofá onde a tia Vicência se instalara, um magotezinho de cadeiras reunira as senhoras, a Beatriz Veloso, com cassa branca sobre seda, que a tornava mais aérea e magra, com uma imensa trunfa de cabelo riçado, e as duas Rojões (com a tia Adelaide Rojão) vermelhinhas como rosinhas, ambas de branco, a mulher do dr. Alípio, de preto, esplêndida como uma Vénus rústica… E foi na sala, como se realmente entrasse um príncipe, desses países do Norte onde os príncipes são magníficos, muito distantes dos homens, e aterram. Um silêncio, como se o tecto de carvalho descesse, nos esmagasse: e todos os olhos se enristaram contra o meu desgraçado Jacinto, como numa caçada hindu, quando à orla da floresta surge o tigre real. Debalde, nas confusas, apressadas apresentações, com que eu o levava através da sala, — os seus apertos de mão, e sorrisos, o vago murmúrio, «da sua honra, do seu prazer», foram repassados de simpatia, de simplicidade. Todos os cavalheiros permaneciam reservados, observando o Príncipe que subira à Serra: e as senhoras mais se conchegavam à sombra da tia Vicência, como ovelhas à volta do pastor, quando na altura surge o lobo. Eu então, já inquieto, lancei o D. Teotónio, o mais ornamental daqueles cavalheiros.
— O sr. D. Teotónio foi muito amável em vir, Jacinto. Raras vezes sai da sua linda casa da Abrujeira.
O Digno sorriu, cofiando os espessos bigodes brancos, de velho brigadeiro:
— Vossa Excelência chegou directamente de Viena?
Não! Jacinto viera directamente de Paris, com o amigo Zé Fernandes. D. Teotónio insistiu:
— Mas certamente visita muitas vezes Viena…
Jacinto sorria surpreendido:
— Viena, porquê?… Não. Há mais de quinze anos que não vou a Viena.
O fidalgo murmurou um lento «Ah!» e ficou calado, de pálpebras baixas, como revolvendo análises profundas, com as mãos cruzadas sob as abas da longa sobrecasaca azul.
Eu então, que vigiava, lancei o dr. Alípio:
— O nosso doutor, meu caro Jacinto, é o mais poderoso influente de todo o distrito.
O doutor curvou a cabeça bem feita, com um belo cabelo preto, admiravelmente alisado e lustroso — a tia Vicência, que se erguera do sofá, chamava o meu Príncipe, porque o Manuel anunciara o jantar, mudamente, mostrando apenas, à porta da sala, a sua corpulenta pessoa, muito tesa e muito vermelha.
À mesa (onde os pudins, as travessas de doces de ovos, os antigos vinhos de Madeira e Porto, nas suas pesadas garrafas de cristal, fundiam com felicidade os seus tons ricos e quentes), Jacinto ficou entre a tia Vicência e uma das Rojões, a Luisinha, sua afilhada, que, por costume velho quando jantava em Guiães, sempre se colocava à sombra da sua boa madrinha; — e a sopa, que era de galinha com macarrão e arroz, foi comida num tão largo, pesado silêncio que eu, na ânsia de o quebrar, exclamei, ao acaso, sem pensar que me achava em Guiães, à minha mesa:
— Está deliciosa, esta sopa!
Jacinto ecoou:
— Divina!
Mas como todos os convidados certamente estranharam este meu brado, e o pasmo excessivo de Jacinto, o silêncio, carregado de estranheza, mais se carregou de embaraço. Felizmente, a tia Vicência, com aquele seu bom sorriso, observou que Jacinto parecia gostar das nossas comidas portuguesas… E eu, sempre no intuito de animar, nem deixei que o meu Príncipe confirmasse o seu amor da cozinha vernácula, gritei:
— Como gosta? Mas é que delira! Pudera! Tanto tempo em Paris, privado!…
E como, ditosamente, me lembrara o prato de arroz-doce preparado no natalício de Jacinto, pelo cozinheiro do 202, contei logo a história, profusamente, exagerando, afirmando que o arroz-doce continha foie gras, e que sobre a sua ornamentada pirâmide flutuava a bandeira tricolor, por cima do busto do conde de Chambord! Mas o arroz-doce, assim estragado, tão longe da serra, não interessava, apenas puxou alguns sorrisos de polida condescendência, quando eu, alternadamente, me voltei para um cavalheiro, para uma senhora, insistindo, exclamando: — Extraordinário, hem? — D. Teotónio observou, misteriosamente, que «o cozinheiro sabia para quem cozinhava». E a bela mulher do dr. Alípio ousou murmurar, corando:
— Havia de ser bonito prato, e talvez não fosse mau!
Eu então logo (ai de mim, para animar) ataquei com desabrida alegria a sr.ª D. Luísa, por ela assim defender a profanação do nosso grande prato nacional! Mas, ai de mim, tão excessiva e ruidosamente interpelei a formosa senhora, que ela se enconchou, emudeceu, toda corada, e mais formosa. E outro silêncio se abatia sobre a mesa, como uma névoa, quando a tia Vicência, providencial, se desculpou para com Jacinto de não ter peixe! Mas quê!, ali na serra era impossível, mesmo a peso de ouro, ter peixe, a não ser a pescada salgada, ou o bacalhau. O excelente Rojão, então, com aquele seu modo, tão suave, que cada sílaba para correr mais docemente parecia lubrificada com óleos santos, lembrou que o sr. D. Jacinto possuía uma larga faixa do Douro, com privilégio para a pesca do sável. Jacinto não sabia, nem imaginava que houvesse sáveis… O dr. Alípio não se admirava porque essas pescas tinham sido vendidas ao Cunha brasileiro, há vinte anos, na mocidade do sr. D. Jacinto. E hoje, segundo D. Teotónio, não valiam dois mil réis. Se já não há sáveis!… E em torno destes sáveis, se iam formando, em torno da mesa, entre os cavalheiros mais vizinhos, lentas cavaqueirinhas rurais — que as senhoras aproveitavam para cochichar, no desabafo daquele silêncio cerimonioso, que viera pesando até aos frangos guisados. Eu então, receoso que essa orla de murmúrios lentos, sem brilho e alegria, se perpetuasse de novo, lancei-me (para animar) interpelando Jacinto, recordando a famosa aventura do peixe da Dalmácia encalhado.
— Isso foi uma das melhores histórias que nos sucedeu em Paris! O Jacinto, por causa de um peixe muito raro, que lhe mandara o grão-duque Casimiro, dava uma magnífica ceia, a que o grão-duque… o grão-duque Casimiro, o irmão do Imperador…
Todos os olhos se desviaram para o meu Jacinto, que se servia de ervilhas: — e o Melo Rebelo quase se engasgou, num sorvo precipitado ao copo, para contemplar no meu amigo algum reflexo do grão-duque. E eu contei, com profusão, o peixe encalhado, o grão-duque pescando, o anzol feito com um gancho de princesa de Carman, o duque de Marizac, caindo quase no poço do elevador… Mas não se produziu um riso, e a atenção mesmo era dada com esforço, por cortesia. Debalde eu arremessava aqueles nomes magníficos de grão-duques e princesas, misturados a coisas picarescas… Nenhum dos meus convidados compreendia o elevador, um prato encalhado num poço negro… Perante o gancho da princesa, as Albergarias baixaram os olhos. E a minha deliciosa história morreu numa reticência, ainda mais regelada pela exclamação da tia Vicência:
— Oh! filho, que coisas!
Mas como Jacinto se enfronhara de repente numa larga conversa com a Luisinha Rojão, que ria, toda luminosa e palradora, — todos, logo, como libertados do peso cerimonioso da sua presença augusta, se lançaram nas cavaqueirinhas discretas, a que agora o champanhe, depois do assado, dava mais vivacidade. Era a orla de murmúrios, em torno da mesa, com relevo e sem bulhas, que retomava, se estabelecia. E eu então desisti de animar o jantar. Mergulhei com a bela mulher do doutor na grande questão social desse tempo em Guiães, o casamento da D. Amélia Noronha com o feitor! E eu defendia a D. Amélia, os direitos do amor, quando se alargou um silêncio, — e era Jacinto, que se debruçava, de copo na mão.
— Velho amigo Zé Fernandes, à tua! Muitos e bons, e sempre em companhia de tua e minha senhora, a quem peço para saudar.
Todos os copos, onde a espuma morria sobre um fundo de champanhe, se ergueram num largo rumor de amizade, e boa vizinhança. Eu acenei ao Manuel, vivamente, para encher os copos, e logo também de pé, atirando para trás a aba da sobrecasaca:
— Meus senhores, peço uma grande saúde para o meu velho amigo Jacinto, que pela primeira vez honra esta casa fraternal!… Que digo eu? Que pela primeira vez honra com a sua presença a sua pátria! E que por cá fique, pelas serras, muitos anos todos bons. À tua, meu velho!
Outro rumor correu pela mesa, mas cerimonioso e sereno. A tia Vicência tilintou o seu copo, quase vazio, no de Jacinto, que tocou no copo da sua vizinha, a Lu